quando for a minha vez de ir ao mar
devolvam-me da infância
as andorinhas
as conchas e
as marés
os búzios, as
canas de pesca, as
tardes
e a
nudez
tragam a leveza que inaugurava a
praia e a
manhã
a mão que escondia o
sol e acenava ao
pássaro branco.
a secreta ânsia de espreitar a tarde
a expressão de repouso no olhar.
Ondjaki
sexta-feira, 20 de janeiro de 2012
As mãos
quinta-feira, 19 de janeiro de 2012
Para vivenciar nadas
borboleta é um ser irrequieto.
para vestes usa pólen.
tem um cheiro colorido
e babas de amizade.
descola por ventos
e facilmente aterriza em sonhos.
borboleta tem correspondência directa
com a palavra alma.
para existir usa liberdades.
desconhece o som da tristeza
embora saiba afogá-la.
usa com afinidades
o palco da natureza.
nega maquilhagens isentas
de materiais cósmicos. como digo:
pó-de-lua, lápis solar
castanho-raiz, cinzento-nuvem.
borboleta dispõe de intimidades
com arcos íris
a ponto de cócegas mútuas.
para beijar amigos e vidas ela usa olhos.
borboleta é um ser
de misteriosos nadas.
Ondjaki
para vestes usa pólen.
tem um cheiro colorido
e babas de amizade.
descola por ventos
e facilmente aterriza em sonhos.
borboleta tem correspondência directa
com a palavra alma.
para existir usa liberdades.
desconhece o som da tristeza
embora saiba afogá-la.
usa com afinidades
o palco da natureza.
nega maquilhagens isentas
de materiais cósmicos. como digo:
pó-de-lua, lápis solar
castanho-raiz, cinzento-nuvem.
borboleta dispõe de intimidades
com arcos íris
a ponto de cócegas mútuas.
para beijar amigos e vidas ela usa olhos.
borboleta é um ser
de misteriosos nadas.
Ondjaki
segunda-feira, 16 de janeiro de 2012
As muitas visitas da Avó Catarina
Na escuridão da varanda, esperando os pequenos ragos de luz a que chamávamos de cinema bu*, a Madalena dizia de vez em quando« a Avó Catarina já está aí...»
Assustados, criávamos em nós um suspense que caracterizava as sessões de cinema bú. Sem ninguém saber, nem a própria Madalena, mesmo ao nosso lado, a Avó Catarina estava de facto lá.
Dedicado portanto à Madalena que partilhou a nossa infância, e a nossa Avó Catarina. Dedicado aos «primos». A todos.
Dedicado portanto à Madalena que partilhou a nossa infância, e a nossa Avó Catarina. Dedicado aos «primos». A todos.
* cinema bu: se não houver falta de luz, se não houver uma varanda com arvoredo por detrás, se não houver um muro onde se sentem crianças criativas, se os carros não passarem provocando sombras na parede da varanda...então, não há cinema bu.
Dizem também que os mortos são melhores visitadores que os vivos. Talvez porque em vida visitar é coisa miúda, que se pode realizar a qualquer momento. Só que no isolamento da morte as coisas não são assim tão simples. As companhias escasseiam e nem sempre são escolhidas. Às vezes são impostas. Por isso é que os mortos, dizem, são melhores visitadores que os vivos.
A Avó Catarina ainda demorou um bocado para nos visitar. Parecia que se estava a acomodar ao novo mundo dela, ou que ainda não tinha vontade de visitar este mundo. Talvez fosse isso. Porque o amor deste mundo, tem duas facetas muito fortes: ou chama os mortos com vontade, ou afasta-os para sempre. Nunca ninguém deste lado chegou a falar nisso. Limitávamo-nos a deixá-la chegar, falar e voltar a partir. Tantas vezes que deixámos de achar anormais as suas visitas. Porque, na verdade, aquilo não era estranho. E alguém acha estranha uma presença quotidiana? Mesmo que seja de um morto. Se aparece todos os dias, passamos a tratá-lo e a encará-lo como mais uma presença de todos os nossos dias.
Às vezes também aparecia de tarde. Ainda estávamos a jogar às escondidas e lá vinha ela dar-nos uma dica, uma altura própria para correr, ou para estar quieto. Isso foi no princípio, lá está, para qeu não nos assustássemos com as suas visitas de morta. Ganhou-nos a confiança e depois foi aparecendo todos os dias. Já não era uma presença estranha. Se não aparecia, o que era raro, perguntávamos por ela como alguém que esperamos sempre que apareça. Às vezes punhámo-nos a gritar por ela. Depois a Avó Nhé ralhava connosco porque «não se chamam os mortos». Só que na hora da brincadeira e principalmente na hora de contar ou inventar estórias, sentiamos sempre a falta da Avó Catarina. Anos mais tarde descobrimos porquê que ela não aparecia nas alturas de contar estórias: seretamente, durante anos e anos, sussurrava a um ou a outro uma pequena estória para contar e ouvir. Era a Avó Catarina que as contava.
Um dia, depois de dormirmos a sesta, ou antes de a terminarmos, acordámos com os berros da Avó Nhé. Descemos, descalços, mal acordados, assustados com os gritos. «Assim a Avó escorregou na varanda.», alguém pôs a hipótese. « Não...» Disse outro mais previdente, «... é a Avo Catarina que esteve aí». Terminadas as escadas e as breves suposições, encontrámos a Avó Nhé no cadeirão da sala, não sei bem se a chorar ou se simplesmente a descontrolar-se. «Não pode ser» dizia, «não pode ser!» E vimo-la olhar para nós como quem olha para anjos salvadores. Aproximámo-nos dela e sentámo-nos no que restava de espaço no pequeno cadeirão. Aliás nunca percebi porquê que o chamavam de cadeirão...
«Ai meus netos... a Avó Catarina estava mesmo aqui ao meu lado..» disse com ar assombrado. Como se as nossas caras não mudassem no sentido em que ela esperava, e como se ela visse nos nosso olhos e nos nossos sorrisos uma cumplicidade de idade avançada, perguntou de maneira ingénua mas certeira : «Vocês já tinham visto a Avó Catarina por ai?...» Nós, criançadamente, rimo-nos devagarinho. Era como se ela nos perguntasse se já tínhamos visto o sol. «Mas depois de morrer, já a tinham visto?» perguntou, incrédula. Criançadamente, em tom de primos que têm segredos em comum, voltámos a rir. Foi a mais velha que falou «A Avó Catarina aparece todos os dias...» disse com cara de quem não mente.
Vimos então, sem espanto, a Avó Catarina sentar-se na cadeira velha que tinha sido sua. A Avó Nhé quis começar a chorar de novo, mas vendo-nos todos ir ter com a Avá Catarina sem receio, e até mesmo com aquele ar de miúdos que cumprimentam um mais velho que acaba de chegar, guardou o seu chorozinho para mais tarde. Quando ia começar uma conversa que a Avó Catarina não queria ter, a mesma conversa de sempre, aquela que os mais velhos gostam de ter com os mortos, cheia de perguntas que os mortos não podem responder, a Avó Catarina cortou-lhe a fala levantando-se e dizendo « Vou lá acima… acho que deixei a janela aberta...»
A Avó Catarina continuava psicologicamente intacta. Tão vivente de dois mundos como sempre tinha sido em vida. A mania das janelas e portas abertas ou fechadas, não tinha sido apaziguada pelos ventos da morte. Pelo contrário. Agora podia subir e descer quantas vezes quisesse sem sofrer as moléstias do cansaço. Muitas vezes, enquanto contava estórias através de um de nós, víamo-nos atrapalhados quando ela sumia por instantes para ir fechar alguma janela. Era nessas alturas que as estórias perdiam algum nexo pois esse nexo tinha que ser inventado na ausência do murmúrio da Avó.
Mas a Avó Nhé logo se habituou. Conversava connosco sobre tais visitas contínuas e percebemos, hoje, que aquilo não passava de uma curiosidade irresistível, da sua parte, de saber tudo o que a Avó Catarina nos contava. Coisas, disse ela mais tarde, que nunca lhe tinha contado. Sentia-se um pouco magoada por saber de coisas tão importantes que ela, Avó Catarina, nos contava e que nunca lhe tinha dado a conhecer. Sem perceber, a Avó Nhé caiu na armadilha da sua irmã: nós os miúdos, os que julgávamos compreender todas as estórias que a Avó Catarina contava, erámos os seus intermediários para com esse mundo. Embora ela também visitasse a Avó Nhé de vez em quando, era a nós que ela tinha total acesso. Era em nós que ela podia gravar coisas. Estórias. Dizeres. Verdades. Inacreditáveis verdades, até para nós, que diariamente conversávamos com uma Avó morta!
Inevitavelmente, fomos crescendo. Uns, os primeiros, mais à frente que outros, deixaram simplesmente de acreditar na Avó Catarina, nas suas estórias, em tudo o que tinham gravado na memória. À medida que iam crescendo, os mais velhos iam sistematicamente duvidando de tudo o que sabiam, o que tinham visto, escutado, vivido. Tal como a Avó Nhé se esqueceu de tudo o que estava ligado à Avó Catarina, até porque esta deixou, com o tempo, de ir aparecendo, também nós as crianças, com o tempo, deixámos de vê-la. Eu fui o último a estar com ela.
Via dolorosamente que os primos já não a viam. Já não criam nem conseguiam crer na sua presença de todos os dias. Tal como a Avó Nhé, cresceram e deixaram de estar com ela. Cortaram-lhe o acesso. Anos antes, aproveitando-se de nosso poder de contágio, a Avó Catarina visitou durante meses a sua irmã - a Avó Nhé. Esse período começou com o doa em que descemos as escadas quando ouvimos o berro da Avó Nhé. Despois, a sua presença voltou a ser um exclusivo nosso, das crianças, dos primos, dos netos. Pouco antes da prima mais velha deixar de acreditar na Avó Catarina, vivemos um período de riqueza da tradição oral. Diariamente, abdicando dos seus intermediários provisórios, ou seja, nós próprios, a Avó Catarina contou-nos (em directo) estórias magnificas de um mundo que está tão perto de nós no dia - a - dia, que nem chegamos a vê-lo. Ela dividiu as nossas memórias, preparou-nos um a um, para anos mais tarde cada um de nós se lembrar da parte que lhe coubesse. Foram tempos de intensa passagem de testemunhos vivenciais que a Avó Catarina não permitia que o tempo engolisse. Defendendo-se como podia dessas mordidelas da morte, cultivou então nas nossas memórias as mais belas, as mais puras, as mais típicas estórias das gentes e dos mundos que ela tinha conhecido. Verdadeiramente empenhada em enganar a morte, esqueceu-se de nos preparar para enfrentar o tempo e a idade. Foram essencialmente eles que nos levaram a maior parte dos incríveis mundos que a Avó Catarina nos tinha entregado.
Quando a prima mais velha deixou de ser criança, arrastando consigo os seguintes primos que inevitavelmente se dirigiam para a frente também, eu fiquei, por pouco tempo, esquecido do comboio dos adultos. Foi quando a Avó Catarina, gasta, cansada, se lembrou dos seus inimigos mais fortes: tempo e a (minha) idade. Impingiu-me então à toda força, mundos e mundos de estórias que não cabiam na minha cabecinha. Aliás, era pouco provável que coubessem, pois o meu caminho também já estava minado pelos meus primos. Já não me era permitido falar com ou da Avó Catarina, pois já mais ninguém podia estar com ela. Deu-se então uma enorme batalha: por um lado, a família dos adultos que me queria arrastar para o mundo deles. Por outro, a metafórmica criatividade da Avó Catarina que, não me querendo reter na infância, precisava apenas de conversar um pouco de infância na minha mente para que, no terreno fértil das mentes infantis, pudesse plantar e ver brotar os mundos que ela pretendia negar à morte.
Só porque eram muitos mais, os adultos venceram. Numa despedida dolorosa, vi nas sombras escuras da varanda, a Avó Catarina contar-me as últimas estórias. Senti-a minar profundamente a minha memória. Gastar, naquele momento último, todas as sias forças para enterrar profundamente recordações que nem a idade nem o tempo nem os adultos me poderiam arrancar: precisamente estas.
Estávamos sentados na varanda a ver cinema bu. Era o cinema mais barato e mais imaginário que conhecíamos. Acontecia quando faltava luz. Íamos para a varanda e virávamo-nos para a parede. De longe, os carros que passavam injectavam na noite o poder luminoso dos seus faróis. Esses jactos de luz partiam do carro, passavam pelo arvoredo do jardim da nossa casa e projectavam sombras na parede. Essas sombras era a alma do cinema bu. A interpretação era nossa. Foi nesse cinema barato, carente de muita imaginação, que vi pela última vez a Avó Catarina. Ainda disse qualquer coisa aos outros, mas estavam demasiadamente entretidos com um filme de bang bang.
Já sem sermos crianças, quando por vezes na diversidade da vida uma parede, um carro, e algumas sombras provocam um momento de cinema bu, todos nós, primos, as crianças, os netos, encontramo-nos com a Avó Catarina. Ocorre então uma coisa engraçada: apercebemo-nos de que ela ainda tem o poder de nos contar estórias. Nós é que temos a mania de chamar a essas estórias, cinema bu.
Ondjaki, Momentos De Aqui
Os óculos da Charlita
Todas as filhas do sr. Tuarles viam muito mal. Durante o dia, como havia luz do sol, não se notava tanto, mas a partir das cinco e meia da tarde todas elas recusavam jogar «escondidas» porque tinham medo de não encontrar nenhum dos escondidos.
Perto das cinco era hora do lanche. A avó Agnette - ou a tia Maria - vinha até à varanda e gritava o nome de um de nós. Alguém berrava «abuçoitos» e o jogo sofria esse intervalo de irmos beber chá aguado ou comer meia banana com pão. As filhas do sr. Tuarles não lanchavam. Ficavam no muro da casa delas à espera. Se demorássemos muito já não queriam continuar nenhum jogo.
A Charlita era a única que tinha uns óculos muito grossos, muito amarelos e muito feios. Elas eram cinco - as filhas do sr. Tuarles. A Charlita além de ser a dona dos óculos era também a única que já tinha ido a Portugal com o próprio sr. Tuarles, numa deslocação que tinha dado muito que falar na Praia do Bispo.
Depois do lanche o sol ia embora de repentemente. Os soviéticos abandonavam a obra do Mausoléu e nós ficávamos ali, no muro que dividia a casa da avó Agnette da casa do sr. Tuarles. Passavam também muitos trabalhadores angolanos. Depois passava o camião com uma torneira atrás a jorrar bué de água para acabar com a poeira. A Praia do Bispo era um bairro cheio de camiões: passava esse camião da água, o camião-cisterna que vinha pôr gasolina na bomba, o camião do lixo e o camião do fumo dos mosquitos. Todos esses camiões davam alegria e tinham uma música própria que nós gritávamos enquanto corríamos atrás deles.
A noite chegava. A conversa no muro aquecia. Dois ou três ficavam a estigar, os outros riam só. O Paulinho contava filmes do Bruce Lee, do Trinitá e dos ninjas enquanto, num outro muro, atrás da trepadeira, o Gadinho espreitava a nossa infância de riso e atrevimento. O Gadinho era «testemunha», não podia brincar quase nada nem ir a festas. Nem mesmo receber prendas como um bolo de anos que lhe quisemos só oferecer.
Se entrássemos por alguma razão na sala do sr. Tuarles, encontrávamos todo o mundo com o rabo afundado nuns cadeirões muito grandes e antigos. A mulher do sr. Tuarles. Os filhos rapazes do sr. Tuarles e a mãe da mulher do sr. Tuarles.
As filhas ficavam sentadas perto, muito perto da televisão. Quando digo perto, estou a falar de dois ou três palmos entre a cara delas e o ecrã. De vez em quando o sr. Tuarles gritava para se afastarem para os lados:
— Dêem espaço, porra. Eu também quero ver.
A mulher do sr. Tuarles, a dona Isabel, não dizia nada. A mãe da mulher do sr. Tuarles, a avó Maria, dizia alguma coisa em kimbundu e depois ria. Nós tremíamos.
As filhas passavam os óculos entre elas. Cada uma via dois minutos e os óculos mudavam de rosto. Era bonito de ver. Quando não tinham os óculos na cara, tapavam o rosto quase todo e deixavam um buraquinho apenas, «para ver melhor», diziam. Mas se a novela aquecesse numa parte assim mais entusiasmante, o sr. Tuarles gritava «dêem espaço, porra» e a Charlita, por ser a dona, voltava a pôr os óculos na cara. E ria.
Todas as filhas do sr. Tuarles viam muito mal. Mas a Charlita - que tinha os óculos grossos, amarelos e feios - ria de ser a única da casa que conseguia ver bem as telenovelas e os sorrisos nas bocas nítidas de todas as personagens.
Perto das cinco era hora do lanche. A avó Agnette - ou a tia Maria - vinha até à varanda e gritava o nome de um de nós. Alguém berrava «abuçoitos» e o jogo sofria esse intervalo de irmos beber chá aguado ou comer meia banana com pão. As filhas do sr. Tuarles não lanchavam. Ficavam no muro da casa delas à espera. Se demorássemos muito já não queriam continuar nenhum jogo.
A Charlita era a única que tinha uns óculos muito grossos, muito amarelos e muito feios. Elas eram cinco - as filhas do sr. Tuarles. A Charlita além de ser a dona dos óculos era também a única que já tinha ido a Portugal com o próprio sr. Tuarles, numa deslocação que tinha dado muito que falar na Praia do Bispo.
Depois do lanche o sol ia embora de repentemente. Os soviéticos abandonavam a obra do Mausoléu e nós ficávamos ali, no muro que dividia a casa da avó Agnette da casa do sr. Tuarles. Passavam também muitos trabalhadores angolanos. Depois passava o camião com uma torneira atrás a jorrar bué de água para acabar com a poeira. A Praia do Bispo era um bairro cheio de camiões: passava esse camião da água, o camião-cisterna que vinha pôr gasolina na bomba, o camião do lixo e o camião do fumo dos mosquitos. Todos esses camiões davam alegria e tinham uma música própria que nós gritávamos enquanto corríamos atrás deles.
A noite chegava. A conversa no muro aquecia. Dois ou três ficavam a estigar, os outros riam só. O Paulinho contava filmes do Bruce Lee, do Trinitá e dos ninjas enquanto, num outro muro, atrás da trepadeira, o Gadinho espreitava a nossa infância de riso e atrevimento. O Gadinho era «testemunha», não podia brincar quase nada nem ir a festas. Nem mesmo receber prendas como um bolo de anos que lhe quisemos só oferecer.
Se entrássemos por alguma razão na sala do sr. Tuarles, encontrávamos todo o mundo com o rabo afundado nuns cadeirões muito grandes e antigos. A mulher do sr. Tuarles. Os filhos rapazes do sr. Tuarles e a mãe da mulher do sr. Tuarles.
As filhas ficavam sentadas perto, muito perto da televisão. Quando digo perto, estou a falar de dois ou três palmos entre a cara delas e o ecrã. De vez em quando o sr. Tuarles gritava para se afastarem para os lados:
— Dêem espaço, porra. Eu também quero ver.
A mulher do sr. Tuarles, a dona Isabel, não dizia nada. A mãe da mulher do sr. Tuarles, a avó Maria, dizia alguma coisa em kimbundu e depois ria. Nós tremíamos.
As filhas passavam os óculos entre elas. Cada uma via dois minutos e os óculos mudavam de rosto. Era bonito de ver. Quando não tinham os óculos na cara, tapavam o rosto quase todo e deixavam um buraquinho apenas, «para ver melhor», diziam. Mas se a novela aquecesse numa parte assim mais entusiasmante, o sr. Tuarles gritava «dêem espaço, porra» e a Charlita, por ser a dona, voltava a pôr os óculos na cara. E ria.
Todas as filhas do sr. Tuarles viam muito mal. Mas a Charlita - que tinha os óculos grossos, amarelos e feios - ria de ser a única da casa que conseguia ver bem as telenovelas e os sorrisos nas bocas nítidas de todas as personagens.
Ondjaki, Os Da Minha Rua
domingo, 15 de janeiro de 2012
Ondjaki
Ficcionista e poeta angolano, pseudónimo literário de Ndalu de Almeida, nascido em 1977, em Luanda, dois anos depois da proclamação da Independência do seu país. Nesta cidade viveu a sua infância e adolescência, tendo criado um leque de amizades com pessoas oriundas das mais diversas camadas sociais e formações. Frequentou a escola pública até ao 10.º ano de escolaridade, tendo, então, vindo para Lisboa onde estudou Sociologia.
Amante da leitura desde muito menino, Ondjaki foi criando estofo para penetrar, através de uma leitura cuidadosa, nas obras de autores esteticamente diversificados, como Graciliano Ramos, Sartre, Ionesco e mais tarde, Vargas Llosa e Gabriel Garcia Márquez.
A sua atração pela atividade cultural lançou-o, ainda em Luanda, num curso de mímica que o levou a aprofundar a sua paixão pelo teatro e pela escrita. Assim, integrou, durante dois anos, um grupo de teatro amador e, depois de frequentar um curso livre de teatro, representou uma peça do dramaturgo Eugène Ionesco, O futuro está nos ovos.
Jovem dinâmico e de multifacetas, não se deixou arrastar para o pântano da desilusão e da frustração que a coabitação com uma realidade degradante e corrupta, atentatória dos mais elementares direitos, necessariamente provoca em espíritos esclarecidos e livres. Pelo contrário, consciente desta situação, o autor procurou empenhar-se e envolver-se nas iniciativas culturais que se realizam em Luanda, tendo sido um dos responsáveis por várias criações, de que é exemplo a revista Nganza Times, criada em 1993. Revista cómico-satírica, Nganza Times conheceu seis números cuja responsabilidade Ondjaki dividiu com os seus colegas de escola.
Já em Lisboa, em 1996, frequenta um curso de escrita criativa, sentindo que o chamamento da ficção se intensifica. Este curso constituiu um patamar fundamental na sua produção, pela importância que "as magias da literatura" adquiriram na sua obra. Esta magia, associada ao seu imaginário nutrido por recorrentes idas a Luanda, permitiu-lhe desenvolver a sua arte de fabulação, começando por escrever pequenas "estórias" e contos.
Em 2000, publicou o seu primeiro livro de contos, intitulado Momentos de Aqui, com o qual concorreu à final do prémio literário PALOP (promovido pelo Fundo Bibliográfico Europeu), realizada em S. Tomé. Esta iniciativa facultou a Ondjaki contactos com outros escritores, nomeadamente com o seu conterrâneo Jacques Arlindo dos Santos, responsável pela editora Chá de Cachinde, que o convidou para participar na coleção Independência. Respondendo a este repto, o autor publicou, em 2001, o livro Bom Dia Camaradas que o consagrou, definitivamente, nos circuitos literários. Com uma linguagem caracterizada pela oralidade, onde os termos locais e geracionais são recorrentes, esta obra é fruto de experiências vivenciadas. Coloca-nos perante um cruzamento entre o tempo do pretérito colonial e o do presente pós-independência, através das certezas e das dúvidas enformadas pelas personagens Camarada António (criado de um diretor português no tempo colonial) e Menino (adolescente que apenas conhece a Luanda libertada).
Ainda em 2000, fez chegar ao prelo um conjunto de oito textos poéticos com o título Palavras Desaguadas, sob a chancela das Edições Pilar e Bianchi Editores, e com o qual concorreu à Antologia Internacional Agua en el Tercer Milénio. No mesmo ano, publicou a prosa poética A Freira, pela mesma editora, e o livro de poesia Actu Sanguíneu, que foi contemplado com uma menção honrosa no Prémio Literário António Jacinto.
Em maio de 2002, o autor editou pela Editorial Caminho a novela O Assobiador e em 2004 Quantas Madrugadas tem a Noite.
Escritor e poeta conhecido e reconhecido nos caminhos literários, Ondjaki tem muitos dos seus títulos publicados em antologias internacionais, nomeadamente brasileiras e uruguaias e na Antologia "Angola - a festa e o luto".
Membro da União de Escritores Angolanos, é também colaborador do órgão cultural angolano "O Chã".
In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2012. [Consult. 2012-01-15].
terça-feira, 3 de janeiro de 2012
Feliz 2012!
Sísifo
Recomeça...
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar
E vendo
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar
E vendo
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.
Miguel Torga
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